Os sem igreja e o
niilismo
No mundo de hoje (diga-se no Ocidente)
cresceu e cresce o número de pessoas que se declaram cristãos ou evangélicos,
mas não têm ou desejam participar ativamente da membrezia de uma igreja local,
a qual chama de institucionalizada. Aproximadamente existem, só no Brasil, mais
de 4 milhões destes, segundo os últimos dados do IBGE[1].
Notadamente, estes “irmãos”
criticam basicamente a forma da igreja (templo / oficiais / dinheiro) ou estão
decepcionados por algum tipo de sofrimento que passaram com a liderança dos
locais onde pertenciam. Não são membros de longa data, pois estiveram na
“igreja” por menos de 6 anos na sua maioria (média mundial)[2],
portanto, são pessoas oriundas da última geração de indivíduos fortemente influenciados
pelo pós-modernismo cultural e o neoliberalismo[3] das
três décadas passadas
São considerados como evangélicos
nominais, termo que sociologicamente se assemelha aos católicos nominais, este
último, um contingente gigantesco entre os que se declaram católicos no Brasil.
Esses católicos nominais não freqüentam a igreja, não vão à missa, não são
devotos de nenhum santo ou o são de santos por escolha pessoal, limitadas ao
seu interesse, como Santo Antônio, para obter casamento, Expedito, para conseguir
emprego, e por aí vai. São plenamente descompromissados com sua fé declarada e
não se comportam como seria exigido de um fiel desta religião.
O “movimento” não é novo na
história da igreja, havendo, desde o início da cristandade, muitos casos de
deserção, e alguns deles, extremamente heréticos, ou seja, por implantação de
doutrinas, conceitos e comportamentos nocivos à verdadeira fé e à vida cristã
saudável, como por exemplo, o gnosticismo, doutrina perniciosa que tem
tentáculos até os nossos dias[4].
Mas a igreja contra qual esses movimentos pregavam e vociferavam continuou e
continua a existir, e a maioria destes desapareceu.
Gostaria de tecer somente dois pequenos
comentários sobre isso, um bíblico e outro histórico. Faço isto na tentativa de
responder a mim mesmo, se eu estivesse na situação oposta á minha, a de
desigrejado com um sincero e profundo desejo de compreender a vontade de Deus e
de não viver em engano que pode comprometer a minha eternidade com Cristo.
Bíblico
Qualquer leitor da Bíblia conhece
o texto da carta aos hebreus onde o escritor sagrado nos exorta a não deixar de
frequentar a reunião da igreja (Hebreus 10.25) e ele diz isso porque sabe que
já em sua época, isso era um costume de alguns que outrora haviam feito a
profissão de fé cristã. Não duvidamos da inspiração da carta e não rejeitamos
seu conteúdo em hipótese alguma, pois ela é quem descreve com maestria a
mudança da Antiga para a Nova Aliança e entroniza a Jesus, o Cristo como nosso
Sumo Sacerdote eterno. Por isso, suas exortações finais também devem ser
acertadamente consideradas como vontade de Deus para a igreja de Deus.
Consequentemente precisamos
perguntar: Onde está escrito em todo o Novo Testamento que o convívio entre os
cristãos seria perfeito, que não haveria sofrimentos, rejeições, incompreensões
ou desafetos? Onde se lê que nas relações diárias e no próprio culto / reunião
todas as coisas seriam simples, amáveis e plenas de amor? Onde se vê que nas
relações com as lideranças na igreja, os liderados / rebanho não sofreriam
qualquer tipo de abuso?
Ao contrário, se lermos
atentamente e com escrutínio espiritual, iremos perceber que as cartas foram
escritas justamente para regular o convívio entre os irmãos e com a sociedade
ímpia ao redor da igreja. As cartas nos falam de um ideal e princípios a serem
alcançados na vida prática e nas relações diárias dos irmãos. Porque se isso
não for assim, onde ficam o Sermão do Monte, os ensinos de Jesus, as cartas
paulinas como as de Coríntios, Efésios, Timóteo, para não dizer todas? Todas
essas coisas e as demais não nos falam precisamente que as relações não são
perfeitas – por nossa própria causa – e precisam ser ajustadas ao padrão de
Deus?
É exatamente por isto que não
devemos deixar de congregar, de ir ao local de reunião da igreja, porque não
devemos fugir da responsabilidade cristã de corrigir nossas falsas percepções
pessoais da vida e da igreja, não podemos igualmente deixar de levar a cruz,
que indica o peso leve do compromisso com Cristo, que mesmo quando foi
injuriado, incompreendido, rejeitado e ferido, mas mesmo assim, liberou o
perdão aos seus ofensores[5].
Deixar de congregar é negar a terapêutica de Deus em nos fazer homens e
mulheres de paz e paciência interiores.
Deixar de congregar é negar a
Deus e ao seu Cristo nos fundamentos mais básicos do cristianismo, como o amor
(que amor é esse, que ama somente aos que o amam e aos que não lhe fazem mal?)[6],
como a fé (que tudo sofre, tudo crê, tudo suporta e tudo espera)[7] e
como o perdão (não se pode exercitá-lo sem ofensas). Somos melhores que Jesus?
Somos mais especiais que os apóstolos que foram feridos morreram por sua fé
inabalável? Somos seres superiores que não podemos viver e expressar os textos
bíblicos do amor e do perdão a quem nos fere ou injuria, mesmo sendo da igreja?
Existem muitas coisas não
bíblicas com este tipo de movimento, mesmo que usem as desculpas mais comuns
para manterem suas posições antiinstitucional.
Histórico
Quero me utilizar do termo
niilismo como comentário histórico acerca do comportamento sem igreja ou de
desigrejados atuais. Isto porque é consenso que o movimento dos desigrejados é
por visto claramente como uma tendência niilista, mesmo que sem ser percebido
pelos que apenas seguem as modas que a cada tempo surgem. Resumidamente
poderíamos descrever o niilismo como um movimento histórico como segue.
É uma doutrina política e
filosófica que se fundamenta na negação da ordem social estabelecida e de todas
as formas de esteticismo, e na defesa do Utilitarismo e Racionalismo
Científico. Para os niilistas, todos os males derivam de uma única fonte, a
ignorância, que somente a ciência é capaz de suprimir. Kropotkin, pensador
anarquista russo, definiu o niilismo como uma luta contra a tirania, a
hipocrisia e artificialismos, e em favor da liberdade individual.
A doutrina niilista, que foi
profundamente influenciada pelas ideias de Ludwig Feuerbach, Charles Darwin,
Henry Buckle e Herbert Spencer, surgiu na antiga Rússia durante o reinado de
Alexandre II (séc. XIX). O termo foi empregado pela primeira vez por Nicolai
Nadezhdin e foi popularizado por Ivan Turgenev em 1862. É desde pano de fundo
histórico que não apenas o termo deriva, mas seu comportamento comum entre seus
seguidores[8].
Se o niilismo é a fonte
filosófica (não se vive sem filosofar em algum nível!) e doutrinária do
movimento dos sem igreja, mesmo que estes não se considerem niilistas (na forma
podem não ser, mas na prática o são!), fica claro o porquê que este tipo de
movimento conta com um número crescente hoje. Qualquer pessoa que não estiver
satisfeita com as organizações estabelecidas, como as igrejas, ou que
particularmente se sentirem feridas e abusadas por qualquer tipo de liderança,
como os pais ou os pastores, encontrará no movimento um coro que justificará,
não somente os seus sentimentos de repulsa e raiva, mas também justificará a
sua decisão de abandoná-las.
Mais uma vez repete-se o ciclo
anterior que desemboca e culmina na rejeição aos maiores de todos os
mandamentos: o amor a Deus e o amor ao próximo[9]. Esses
mandamentos só podem ser vividos exclusivamente no convívio e não no
isolamento. Poderiam ser multiplicados os textos bíblicos que nos exortam e nos
ordenam ao convívio com os irmãos, mesmo que seja num ambiente institucional,
pois as ordens bíblicas são para serem vividas em qualquer lugar, em casa, na
empresa, na sociedade, na igreja mística e na igreja institucionalizada. Não há
escolhas pessoais de locais para exercitar a fé, o perdão, e o amor cristãos.
Fim
Não é preciso dizer que a igreja
institucionalizada não é perfeita, mas a igreja “espiritual” também não é. Ela
é composta de pecadores arrependidos com possibilidades e sujeitos ao pecado e
por isso, debaixo das mesmas imperfeições. Deixar a igreja “institucionalizada”
com a desculpa dos erros que há nela é a mesma coisa que tentar extrair a mão
do braço porque considera que ele esteja apodrecido. Isso não vai dar certo.
Quando um órgão está doente faz-se cirurgia de remoção ou transplante –
extração ou substituição – mas isso só funciona mais ou menos bem na medicina,
não na vida espiritual da igreja de Cristo.
Foi Paulo quem nos ensinou a
analogia do corpo e de como os membros se relacionam em sua interdependência e
necessidade mútua para nos mostrar como deveria ser nossa cosmovisão em relação
ao corpo de Cristo[10],
a igreja. É também seríssimo considerar algo aqui: será que os que estão sem
igreja pensam que somente eles são “igreja”? E os que não fizeram a opção de
deixar a que chamam de institucionalizada por não acreditarem nestes mesmos
postulados defendidos por eles, não fazem parte do corpo de Cristo? É muito
fácil justificar posições pela Bíblia, mas não é nada fácil ser julgado por
ela!
Portanto, duas coisas são parte
integrante do movimento dos desigrejados: 1) há de fato aqueles que foram
feridos, usados e abusados por autoridades eclesiásticas com finalidades
pessoais e de enriquecimento, mas estes mesmos que foram vitimados por esse
joio que cresceu no campo do Senhor, são convidados a perdoar, curarem-se pelo
poder do Espírito Santo que dá o seu fruto, chamados a orar pelos que lhes
fizeram mal e lutar para essas realidades sejam eliminadas no seio da amada
igreja de Cristo, sem, contudo, sair dela.
E, 2) há os que não têm nenhum
motivo concreto para criticá-la, a não ser sua própria insatisfação pessoal com
qualquer nível de ordem, de autoridade, de organização ou de rebeldia, que
naturalmente, sem receios, falam abertamente contra qualquer coisa que lhes
desagrade, sem respeito ou consideração e, como, diz Pedro e Judas em suas
cartas, seres irracionais, destilam seu veneno mortífero por todos os lados, na
tentativa de atingir quantos puderem. A estes, o texto bíblico os chama ao
arrependimento, ao cumprimento das obras de justiça, à confissão dos pecados e
à mortificação de sua própria carne rebelde. As Escrituras não os convidam a
sair da igreja, mas a converter-se de seus maus caminhos.
A conversão genuína é um convite
a todos, aos “igrejados” e aos “desigrejados”.
Mas Deus, não tendo em conta os tempos da ignorância, anuncia
agora a todos os homens, e em todo o lugar, que se arrependam;
Porquanto tem determinado um dia em que com justiça há de
julgar o mundo, por meio do homem que destinou; e disso deu certeza a todos,
ressuscitando-o dentre os mortos.
Atos 17:30-31
Soli Deo gloria!
© C. K. Carvalho
Teólogo e Cientista Social
Pastor Sênior da Comunidade Batista Bíblica
Fundador da ONG ABAN Brasil
Notas
[1]
Utilizei-me das informações contidas no Censo Demográfico do IBGE de 2010. Lá
estão as características gerais da população, religião e pessoas com
deficiência. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf
[2]
Na revista online Teologia Brasileira há uma matéria com o título: Niilismo
eclesiástico: uma análise do movimento dos desigrejados, do Pr. Idauro de
Oliveira Campos Júnior. Disponível em: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=390
[3]
Do artigo: Assalto ao Estado e ao mercado, neoliberalismo e teoria econômica,
do Prof. Luiz Carlos Bresser-Pereira da Fundação Getúlio Vargas, publicado em
2009 em Estudos Avançados. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v23n66/a02v2366.pdf
[4]
Só para se ter uma ideia simples de como isso chegou aqui, deixo o link da
Igreja Gnóstica do Brasil. Disponível em: http://www.gnose.org.br/
[5]
1 Pedro 2.21-24 descreve exatamente isso.
[6]
Sermão do Monte. Mateus 5.46.
[7]
1 Coríntios 13.7. Chamo este capítulo de Salmo do Amor.
[8]
Extraído da Enciclopédia Barsa, volume 10, de 1977, pois considero que esta e a
Britânica são as melhores fontes de compreensão de termos mais antigos e
originais.
[9]
Marcos 12.28-31
[10]
1 Coríntios 12.12-27.