terça-feira, 2 de setembro de 2014

Os sem igreja e o niilismo


Os sem igreja e o niilismo

No mundo de hoje (diga-se no Ocidente) cresceu e cresce o número de pessoas que se declaram cristãos ou evangélicos, mas não têm ou desejam participar ativamente da membrezia de uma igreja local, a qual chama de institucionalizada. Aproximadamente existem, só no Brasil, mais de 4 milhões destes, segundo os últimos dados do IBGE[1].

Notadamente, estes “irmãos” criticam basicamente a forma da igreja (templo / oficiais / dinheiro) ou estão decepcionados por algum tipo de sofrimento que passaram com a liderança dos locais onde pertenciam. Não são membros de longa data, pois estiveram na “igreja” por menos de 6 anos na sua maioria (média mundial)[2], portanto, são pessoas oriundas da última geração de indivíduos fortemente influenciados pelo pós-modernismo cultural e o neoliberalismo[3] das três décadas passadas

São considerados como evangélicos nominais, termo que sociologicamente se assemelha aos católicos nominais, este último, um contingente gigantesco entre os que se declaram católicos no Brasil. Esses católicos nominais não freqüentam a igreja, não vão à missa, não são devotos de nenhum santo ou o são de santos por escolha pessoal, limitadas ao seu interesse, como Santo Antônio, para obter casamento, Expedito, para conseguir emprego, e por aí vai. São plenamente descompromissados com sua fé declarada e não se comportam como seria exigido de um fiel desta religião.

O “movimento” não é novo na história da igreja, havendo, desde o início da cristandade, muitos casos de deserção, e alguns deles, extremamente heréticos, ou seja, por implantação de doutrinas, conceitos e comportamentos nocivos à verdadeira fé e à vida cristã saudável, como por exemplo, o gnosticismo, doutrina perniciosa que tem tentáculos até os nossos dias[4]. Mas a igreja contra qual esses movimentos pregavam e vociferavam continuou e continua a existir, e a maioria destes desapareceu.

Gostaria de tecer somente dois pequenos comentários sobre isso, um bíblico e outro histórico. Faço isto na tentativa de responder a mim mesmo, se eu estivesse na situação oposta á minha, a de desigrejado com um sincero e profundo desejo de compreender a vontade de Deus e de não viver em engano que pode comprometer a minha eternidade com Cristo.

Bíblico
Qualquer leitor da Bíblia conhece o texto da carta aos hebreus onde o escritor sagrado nos exorta a não deixar de frequentar a reunião da igreja (Hebreus 10.25) e ele diz isso porque sabe que já em sua época, isso era um costume de alguns que outrora haviam feito a profissão de fé cristã. Não duvidamos da inspiração da carta e não rejeitamos seu conteúdo em hipótese alguma, pois ela é quem descreve com maestria a mudança da Antiga para a Nova Aliança e entroniza a Jesus, o Cristo como nosso Sumo Sacerdote eterno. Por isso, suas exortações finais também devem ser acertadamente consideradas como vontade de Deus para a igreja de Deus.

Consequentemente precisamos perguntar: Onde está escrito em todo o Novo Testamento que o convívio entre os cristãos seria perfeito, que não haveria sofrimentos, rejeições, incompreensões ou desafetos? Onde se lê que nas relações diárias e no próprio culto / reunião todas as coisas seriam simples, amáveis e plenas de amor? Onde se vê que nas relações com as lideranças na igreja, os liderados / rebanho não sofreriam qualquer tipo de abuso?

Ao contrário, se lermos atentamente e com escrutínio espiritual, iremos perceber que as cartas foram escritas justamente para regular o convívio entre os irmãos e com a sociedade ímpia ao redor da igreja. As cartas nos falam de um ideal e princípios a serem alcançados na vida prática e nas relações diárias dos irmãos. Porque se isso não for assim, onde ficam o Sermão do Monte, os ensinos de Jesus, as cartas paulinas como as de Coríntios, Efésios, Timóteo, para não dizer todas? Todas essas coisas e as demais não nos falam precisamente que as relações não são perfeitas – por nossa própria causa – e precisam ser ajustadas ao padrão de Deus?

É exatamente por isto que não devemos deixar de congregar, de ir ao local de reunião da igreja, porque não devemos fugir da responsabilidade cristã de corrigir nossas falsas percepções pessoais da vida e da igreja, não podemos igualmente deixar de levar a cruz, que indica o peso leve do compromisso com Cristo, que mesmo quando foi injuriado, incompreendido, rejeitado e ferido, mas mesmo assim, liberou o perdão aos seus ofensores[5]. Deixar de congregar é negar a terapêutica de Deus em nos fazer homens e mulheres de paz e paciência interiores.

Deixar de congregar é negar a Deus e ao seu Cristo nos fundamentos mais básicos do cristianismo, como o amor (que amor é esse, que ama somente aos que o amam e aos que não lhe fazem mal?)[6], como a fé (que tudo sofre, tudo crê, tudo suporta e tudo espera)[7] e como o perdão (não se pode exercitá-lo sem ofensas). Somos melhores que Jesus? Somos mais especiais que os apóstolos que foram feridos morreram por sua fé inabalável? Somos seres superiores que não podemos viver e expressar os textos bíblicos do amor e do perdão a quem nos fere ou injuria, mesmo sendo da igreja?

Existem muitas coisas não bíblicas com este tipo de movimento, mesmo que usem as desculpas mais comuns para manterem suas posições antiinstitucional.

Histórico
Quero me utilizar do termo niilismo como comentário histórico acerca do comportamento sem igreja ou de desigrejados atuais. Isto porque é consenso que o movimento dos desigrejados é por visto claramente como uma tendência niilista, mesmo que sem ser percebido pelos que apenas seguem as modas que a cada tempo surgem. Resumidamente poderíamos descrever o niilismo como um movimento histórico como segue.

É uma doutrina política e filosófica que se fundamenta na negação da ordem social estabelecida e de todas as formas de esteticismo, e na defesa do Utilitarismo e Racionalismo Científico. Para os niilistas, todos os males derivam de uma única fonte, a ignorância, que somente a ciência é capaz de suprimir. Kropotkin, pensador anarquista russo, definiu o niilismo como uma luta contra a tirania, a hipocrisia e artificialismos, e em favor da liberdade individual.

A doutrina niilista, que foi profundamente influenciada pelas ideias de Ludwig Feuerbach, Charles Darwin, Henry Buckle e Herbert Spencer, surgiu na antiga Rússia durante o reinado de Alexandre II (séc. XIX). O termo foi empregado pela primeira vez por Nicolai Nadezhdin e foi popularizado por Ivan Turgenev em 1862. É desde pano de fundo histórico que não apenas o termo deriva, mas seu comportamento comum entre seus seguidores[8].

Se o niilismo é a fonte filosófica (não se vive sem filosofar em algum nível!) e doutrinária do movimento dos sem igreja, mesmo que estes não se considerem niilistas (na forma podem não ser, mas na prática o são!), fica claro o porquê que este tipo de movimento conta com um número crescente hoje. Qualquer pessoa que não estiver satisfeita com as organizações estabelecidas, como as igrejas, ou que particularmente se sentirem feridas e abusadas por qualquer tipo de liderança, como os pais ou os pastores, encontrará no movimento um coro que justificará, não somente os seus sentimentos de repulsa e raiva, mas também justificará a sua decisão de abandoná-las.

Mais uma vez repete-se o ciclo anterior que desemboca e culmina na rejeição aos maiores de todos os mandamentos: o amor a Deus e o amor ao próximo[9]. Esses mandamentos só podem ser vividos exclusivamente no convívio e não no isolamento. Poderiam ser multiplicados os textos bíblicos que nos exortam e nos ordenam ao convívio com os irmãos, mesmo que seja num ambiente institucional, pois as ordens bíblicas são para serem vividas em qualquer lugar, em casa, na empresa, na sociedade, na igreja mística e na igreja institucionalizada. Não há escolhas pessoais de locais para exercitar a fé, o perdão, e o amor cristãos.

Fim
Não é preciso dizer que a igreja institucionalizada não é perfeita, mas a igreja “espiritual” também não é. Ela é composta de pecadores arrependidos com possibilidades e sujeitos ao pecado e por isso, debaixo das mesmas imperfeições. Deixar a igreja “institucionalizada” com a desculpa dos erros que há nela é a mesma coisa que tentar extrair a mão do braço porque considera que ele esteja apodrecido. Isso não vai dar certo. Quando um órgão está doente faz-se cirurgia de remoção ou transplante – extração ou substituição – mas isso só funciona mais ou menos bem na medicina, não na vida espiritual da igreja de Cristo.

Foi Paulo quem nos ensinou a analogia do corpo e de como os membros se relacionam em sua interdependência e necessidade mútua para nos mostrar como deveria ser nossa cosmovisão em relação ao corpo de Cristo[10], a igreja. É também seríssimo considerar algo aqui: será que os que estão sem igreja pensam que somente eles são “igreja”? E os que não fizeram a opção de deixar a que chamam de institucionalizada por não acreditarem nestes mesmos postulados defendidos por eles, não fazem parte do corpo de Cristo? É muito fácil justificar posições pela Bíblia, mas não é nada fácil ser julgado por ela!

Portanto, duas coisas são parte integrante do movimento dos desigrejados: 1) há de fato aqueles que foram feridos, usados e abusados por autoridades eclesiásticas com finalidades pessoais e de enriquecimento, mas estes mesmos que foram vitimados por esse joio que cresceu no campo do Senhor, são convidados a perdoar, curarem-se pelo poder do Espírito Santo que dá o seu fruto, chamados a orar pelos que lhes fizeram mal e lutar para essas realidades sejam eliminadas no seio da amada igreja de Cristo, sem, contudo, sair dela.

E, 2) há os que não têm nenhum motivo concreto para criticá-la, a não ser sua própria insatisfação pessoal com qualquer nível de ordem, de autoridade, de organização ou de rebeldia, que naturalmente, sem receios, falam abertamente contra qualquer coisa que lhes desagrade, sem respeito ou consideração e, como, diz Pedro e Judas em suas cartas, seres irracionais, destilam seu veneno mortífero por todos os lados, na tentativa de atingir quantos puderem. A estes, o texto bíblico os chama ao arrependimento, ao cumprimento das obras de justiça, à confissão dos pecados e à mortificação de sua própria carne rebelde. As Escrituras não os convidam a sair da igreja, mas a converter-se de seus maus caminhos.

A conversão genuína é um convite a todos, aos “igrejados” e aos “desigrejados”.

Mas Deus, não tendo em conta os tempos da ignorância, anuncia agora a todos os homens, e em todo o lugar, que se arrependam;
Porquanto tem determinado um dia em que com justiça há de julgar o mundo, por meio do homem que destinou; e disso deu certeza a todos, ressuscitando-o dentre os mortos.
Atos 17:30-31

Soli Deo gloria!

© C. K. Carvalho
Teólogo e Cientista Social
Pastor Sênior da Comunidade Batista Bíblica
Fundador da ONG ABAN Brasil

Notas





[1] Utilizei-me das informações contidas no Censo Demográfico do IBGE de 2010. Lá estão as características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf

[2] Na revista online Teologia Brasileira há uma matéria com o título: Niilismo eclesiástico: uma análise do movimento dos desigrejados, do Pr. Idauro de Oliveira Campos Júnior. Disponível em: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=390

[3] Do artigo: Assalto ao Estado e ao mercado, neoliberalismo e teoria econômica, do Prof. Luiz Carlos Bresser-Pereira da Fundação Getúlio Vargas, publicado em 2009 em Estudos Avançados. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v23n66/a02v2366.pdf

[4] Só para se ter uma ideia simples de como isso chegou aqui, deixo o link da Igreja Gnóstica do Brasil. Disponível em: http://www.gnose.org.br/

[5] 1 Pedro 2.21-24 descreve exatamente isso.

[6] Sermão do Monte. Mateus 5.46.

[7] 1 Coríntios 13.7. Chamo este capítulo de Salmo do Amor.

[8] Extraído da Enciclopédia Barsa, volume 10, de 1977, pois considero que esta e a Britânica são as melhores fontes de compreensão de termos mais antigos e originais.

[9] Marcos 12.28-31

[10] 1 Coríntios 12.12-27.

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