CARTAS & DOUTRINAS
É comum ler e
ouvir de alguns estudantes ou pregadores em início de seus ministérios e de
suas pesquisas responderem a algumas questões que veem na igreja que não lhes
agrada com afirmações que o novo Testamento ou o apóstolo Paulo não se referiu
a determinados assuntos ou conceitos e por isso estas ou aquelas coisas não
poderiam acontecer nas igrejas por causa disso.
Uso sempre que
posso essa declaração: “todo teólogo mediano sabe...”. Não digo isso como uma
crítica ruim, mas como uma afirmação de que um teólogo mediano é aquele que
esposa uma boa doutrina sistemática, sabe raciocinar os lados opostos do
pensamento teológico que existem e lê consideravelmente todos os dias, tanto a
Bíblia como livros diversos.
Qualquer
teólogo sabe algumas coisas básicas sobre o Novo Testamento ou sobre as
epístolas paulinas. Basicamente se sabe que:
·
O Novo Testamento não foi revelado e produzido
com proposições precisas, com ordem lógica nem organizadas como uma teologia
sistemática.
·
O Novo Testamento não foi escrito como um
exercício de abstração nem como uma tentativa de responder questões
filosóficas.
·
O Novo Testamento é, acima de tudo, uma teologia
pastoral, formulada para lidar com as questões e situações da vida diária do
século I.
·
Paulo escreveu suas epístolas em três situações
diferentes: as epístolas missionárias (Gálatas, 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2
Coríntios e Romanos); as epístolas da prisão (Colossenses, Filemon, Efésios e
Filipenses); e as epístolas pastorais (1 e 2 Timóteo e Tito).
·
Acerca da teologia de suas epístolas podemos
asseverar o seguinte em linhas gerais:
1) Ele
as escreveu por estar preocupado com o bem estar das igrejas plantadas no mundo
gentílico, tanto por seu ministério como as que não.
2) Escreveu
assuntos específicos com os quais se sentia impelido a lidar.
3) Responde
a perguntas específicas da igreja.
4) Com
muito mais frequência, atacava as falsas doutrinas ou as condutas impróprias
que ameaçavam a estabilidade da comunidade cristã.
5) Porém
e tão importante quanto ao que foi dito, as epístolas, por tratarem de assuntos
específicos, não apresentam, quer em seu aspecto individual ou em seu conjunto,
uma teologia abrangente ou sistemática de seus autores.
6) As
únicas que poderíamos falar de uma aproximação abrangente teológica ou
sistemática são as de Romanos e aos Efésios – esta última, F.F. Bruce se refere
a ela como “a quintessência do paulinismo”.
Portanto, e a
partir disso, qual é o meu ponto de discussão? É necessário ao estudante ou
teólogo que se leve em consideração essas premissas anteriores antes de se
fazer condenações ou de precipitadamente emitir opiniões de preferências
pessoais sobre certos aspectos que parecem confusos e “não bíblicos” na igreja
atual. Faço ressalva que há sim, muita coisa estranha em nossas comunidades de
fé e que, como defensores da sã doutrina, não podemos ficar calados ou fingir
que não vemos, mas ao mesmo tempo, não é possível fazer isso com espírito de
criticismo ímpio ou irresponsável, pensando que se faz um bem ao corpo de
Cristo, quando na verdade podemos estar destruindo a comunhão, a fé e o amor
primeiro de muitos cristãos.
Aqui inicio
algumas perguntas básicas que sei que, para algumas delas, não temos resposta e
jamais as teremos. Nenhum teólogo por mais maduro e conhecedor as tem, mas é
preciso mencioná-las como forma de conhecer os limites de nossas
pressuposições. Eis alguns exemplos bem interessantes:
Dízimos
Alguns se
referem à prática dos dízimos de diversas formas negativas. Sem exceção, quando
o assunto é a contribuição dos dízimos temos muitas vozes contrárias e o mais
importante, mencionam que não pode ser uma prática para a igreja cristã porque
o “Novo Testamento não menciona nada a respeito”. Dizem que o que Jesus ensinou
sobre o dízimo e as ofertas não tem a mesma relevância que os escritos
apostólicos porque Jesus se referiu ou à oferta de alimentos ou ele estava
debaixo dos ditames da Lei (por ser judeu) e deveria cumprir e não nós.
Esquecem-se
que todas as referências aos dízimos e ofertas que Jesus fez estavam
diretamente conectadas ao dinheiro real e não a alimentos ou hortaliças. Mesmo
no caso de sua repreensão ao costume dos fariseus em Mateus 23, ele disse que
estes homens davam o dízimo de tudo como a Lei exigia, mas desprezavam o mais
importante, que era o juízo, a misericórdia e a fé. Então, lhes ordenou a
seguir que deveriam continuar dando o dízimo, mas não deviam se esquecer das
outras coisas mais importantes (v.23). Mesmo neste caso, Jesus estava falando
diretamente aos escribas e fariseus e não ao povo. Ao povo e aos discípulos ele
iniciou a conversa dizendo para que fizessem o que eles ensinassem, mas somente
que não reproduzissem as suas motivações erradas (v.2,3).
Minha pergunta
sem resposta: Porque os escritores do Novo Testamento, em específico das
epístolas não mencionam a prática dos dízimos? Será porque eles a consideravam
uma prática ultrapassada ou será que consideraram desnecessário dizer algo
porque isso já estava bem estabelecido como prática comum e jamais foi ponto de
discussão ou de questionamento nas igrejas? Particularmente acredito nesta
última, mas jamais saberemos, portanto, não é inteligente fazer defesas
doutrinárias contra o dízimo.
Sexualidade
É interessante
como pregamos facilmente contra as práticas e comportamentos sexuais mais
diversos sem que no Novo Testamento se tenha uma definição clara ou uma
descrição minuciosa dessas mesmas práticas. Quero dizer com isso que quando os
Evangelhos e as cartas mencionam as práticas sexuais o fazem em termos mais
genéricos possíveis é óbvio dada a extensão e a multiplicidade delas. As
palavras mais comuns são: adultério (moicoV);
prostituição, fornicação e imoralidade (porneia);
sodomia ou homossexualidade (arsenokoitai);
impureza (akaqartoV); concupiscência,
libertinagem e sensualidade (aselgeia)
e luxúria (strhnoV). Porém todas essas
palavras não fazem uma distinção mais plena de certas práticas que existem
desde a antiguidade.
Citemos como
exemplo a lista de pecados sexuais que consta em Levítico 18 e as menções em
Deuteronômio 22:5 e 23:17,18 por exemplo. Em Levítico estão bem determinadas as
limitações de casamentos e uniões sexuais que não são permitidas ao povo de
Deus, inclusive as relações sexuais proibidas com parentes e com animais. Em
Deuteronômio se menciona o travestismo e que os valores ganhos pelos
profissionais do sexo não devem ser trazidos a Deus como oferta. Essas são
parte das leis morais do Senhor e são atemporais Quem em sã consciência
(refiro-me a teólogos e estudantes) diria que essas práticas sexuais proibidas
são culturais e que não significam nada para nós hoje, apenas porque nem Jesus,
Paulo ou os outros escritures não mencionaram nada no Novo Testamento?
Mais perguntas
sem resposta (ou já as temos): os escritores do NT não mencionaram estas
práticas específicas porque elas eram para um tempo da Antiga Aliança –
culturalmente ultrapassadas – ou porque consideravam que esses assuntos já eram
bem fundamentados como pecados na igreja do primeiro século? Ou será que hoje
os cristãos podem ter relações com animais, com suas sogras, com suas irmãs,
trazer o dinheiro da prática da prostituição como ofertas e se travestirem só
porque o Novo Testamento não falou nada diretamente a respeito? É preciso
lembrar que muitos defensores da homoafetividade usam a mesma argumentação.
Conclusão
O Novo
Testamento não aborda todas as questões acerca de práticas de culto que devemos
ou não ter na adoração a Deus, o faz apenas em linhas gerais, mas é enfático na
prática diária da vida de um cristão e de como ele deve se comportar na
sociedade em que vive a fim de glorificar ao Senhor que o salvou e chamou.
Também não afirma que não devemos ter ou não algum utensílio ou instrumento em
nossos cultos como se isso ferisse a Nova Aliança. E por fim, o Novo Testamento
não descreve como deve ser o culto de domingo – oração, cânticos, ofertório,
avisos, pregação, apelo e oração final – mas deixa isso para cada igreja local
resolver (1 Coríntios 14.26).
Assim
sendo, deveríamos nos preocupar com o que o Novo Testamento diz acerca da vida
dos filhos e filhas de Deus que nasceram de novo em seu testemunho e missão de
vida – adoração, caráter e missão – muito mais do que com o que ele não diz –
instrumentos, bandeiras, shofar, candelabro ou outras coisas. Também não se deve
espiritualizar os utensílios como se em si mesmos possuíssem poder ou graça
especial como fazem aqueles que ainda não se libertaram dos sincretismos
religiosos tão comuns hoje. Necessitamos ser mais maduros na fé, no
conhecimento e no amor para que nossa doutrina e teologia pessoal não impeçam a
vida de Deus e seu Espírito fluírem nas igrejas, para não acontecer que caiamos
na infantilidade de achar que podemos encaixotar as coisas espirituais em
nossos moldes preconcebidos.
Melhor
é optar pelo significado que o próprio Novo Testamento dá à Bíblia como um todo
a fim de não cairmos em grosseiro erro:
Toda a Escritura é inspirada por Deus
e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na
justiça,
para que o homem de Deus seja apto e
plenamente preparado para toda boa obra.
2 Timóteo 3:16-17
© Carlos Carvalho
Teólogo e Pastor Sênior da
Comunidade Batista Bíblica
Referências:
BRUCE, F. F. Paulo: o apóstolo da graça, sua vida,
cartas e teologia / F. F. Bruce; trad. Hans Udo Fuchs. – São Paulo: Sheed
Publicações, 2003.
LUZ, Waldyr
Carvalho, Novo Testamento Interlinear
/ Waldyr Carvalho Luz. – São Paulo, SP: Hagnos, 2010.
VINE, UNGER e WHITE JR. Dicionário Vine: o significado exegético e
expositivo das palavras do Antigo e do Novo Testamento / W. E. Vine, Merril
F. Unger, Willian White Jr. [trad. Luís Aron de Macedo] – Rio de Janeiro, RJ:
CPAD, 2002.
ZUCK, Roy B. Teologia do Novo Testamento / Roy B.
Zuck. [trad. Lena Aranha] – Rio de Janeiro, RJ: CPAD, 2008. p. 269-407.
Imagem. Saint Paul Writing His
Epistles, by Valentin de Boulogne or Nicolas Tournier (c. 16th century, Blaffer
Foundation Collection, Houston, TX). Em: http://en.wikipedia.org/wiki/Epistle.