É
BÍBLICO TOCAR SHOFAR NO CULTO?
Uma resposta histórico-bíblica sobre a questão
Há uma série de vídeos postados
nas redes sociais com o tema “Perguntar
não ofende”, onde certas perguntas são feitas a alguns líderes cristãos,
como o Rev. Augustus Nicodemus Lopes e outros, principalmente de matriz
protestante tradicional presbiteriana. Perguntas como ao do título deste
comentário e outras com a ênfase em costumes evangélicos atuais são
interpretados por estes líderes como desvio da fé, ações judaizantes ou
heresias modernas introduzidas na igreja cristã de nossos dias.
Sem intenção alguma de construir
ataques pessoais ao caráter e vida cristã piedosa destes homens, que creio
serem servos de Cristo sinceros, é salutar que também se dê oportunidade ao
contraditório para que a verdade das Escrituras seja mais plenamente defendida
e anunciada em nosso meio e para que os aprovados sejam manifestos, segundo o
parecer do apóstolo Paulo (1 Coríntios 11:19).
O reverendo acertadamente – por
ser um estudioso competente da Teologia e das Escrituras – faz alusões aos
utensílios do Templo e aos sacrifícios da Antiga Aliança de Deus com o povo de
Israel e demonstra como estas coisas são “sombras” e “tipos” ou “figuras” que
expressavam a futura realidade de Cristo – agora entronizado – e que, nele,
encontraram o seu cumprimento cabal e final.
O argumento é válido até certo
ponto, ou seja, é certo e é fato que essas “sombras e tipos” da Aliança antiga
e dos cerimoniais dela foram plenamente satisfeitos em Cristo, mas a associação
que o reverendo faz com alguns itens como se fossem partes exclusivas do rito
judaico não pode ser sustentada. Este é o exemplo do shofar. E direi o porquê, apenas neste caso específico, pois os
demais necessitariam de mais tempo e espaço para fazê-lo.
O shofar foi um instrumento de culto ou de cerimônias que poderíamos
associar ao culto ritualístico da Lei, mas não era um instrumento litúrgico, e
sim, um instrumento utilizado em
culto ou outras situações. Ele é um instrumento de sopro dos mais antigos que
se conhece, porém, não era usado somente nas convocações judaicas religiosas,
mas era igualmente de uso popular.
Haviam vários instrumentos
musicais usados na liturgia e no culto judaico, como o saltério, a cítara, a
gaita de foles e o saltério de dez cordas – todos estes mencionados claramente
nas Escrituras hebraicas – e dos instrumentos de sopro, dois dos tipos principais
eram a corneta (o shofar), feito de chifre de carneiro e a
trombeta, feita de prata batida e
alongada.
Tanto o shofar como a trombeta eram utilizados em todas as celebrações
religiosas, mas somente a trombeta – e não o shofar – era usada exclusivamente para fins sagrados e não
militares. Portanto, o shofar não era
o instrumento preferencial do culto, e sim, a trombeta de metal. A trombeta, e
não o shofar era tocada por ocasião
das ofertas queimadas e das ofertas pacíficas, em tempos de guerra, nas coroações
reais, nas dedicações, para marcar o início de uma batalha na guerra e para
advertir sobre uma invasão (COENEN & BROWN, 2000) . É conclusivo
antecipadamente asseverar que tanto o shofar
como a trombeta podem ser usados num culto solene a Deus, pois, em primeira
instância, todo culto a Deus é sagrado e solene.
Não há nenhuma indicação bíblica,
em qualquer das duas Alianças em que um instrumento musical, e neste caso o de
sopro, seja alguma figura escatológica e muito menos de “sombra ou tipo” que
façam conexão com a pessoa de Cristo. Neste caso particular do shofar, seria
falaciosa a ideia de que ele aponte tipologicamente para o Senhor Jesus Cristo
em qualquer aspecto, pois não há como o fazê-lo.
Segundo se sabe, os cristãos
primitivos aderiram às formas musicais dos hebreus, naqueles lugares onde a
igreja contava com um forte núcleo judeu e, nas terras gentílicas, houve
adaptações locais (CHAMPLIN, 2001), mas jamais houve proibições de tipos de
instrumentos – judaicos ou não – no culto das igrejas, a não ser o caso de
condenações a hinos não autorizados onde a igreja cristã vivia em áreas de
maioria pagã pelo Concílio de Laodicéia em 364 d.C. (CHAMPLIN, 2001).
A trombeta é mencionada 11 vezes
no Novo Testamento conectada com as seguintes situações:
1)
Mateus 6:2 – considerada negativamente por
Jesus.
2)
Mateus 24:31 – anunciando a separação dos
escolhidos no advento da volta visível do Filho do homem.
3)
1 Coríntios 14:8 – como referência à linguagem
inteligível no culto público da igreja.
4)
1 Coríntios 15:52 – no advento da ressurreição
dos justos.
5)
1 Tessalonicenses 4:16 – no retorno de Cristo
para os seus.
6)
Hebreus 12:19 – na narração da história dos
israelitas no Sinai.
7)
Apocalipse 1.10 – no início da visão de João.
8)
4:1 – anunciando mais uma revelação a João.
9)
8:2, 6, 14 – as sete trombetas.
10) 9:14
– outro anjo com trombeta
11) 18:22
– no âmbito do julgamento da Babilônia espiritual futura.
Desta forma, a pergunta não
poderia jamais ser se é bíblico tocar shofar
no culto cristão ou não, porque esta pergunta não faz sentido algum. Quando o
instrumento de sopro é considerado somente como isso: um instrumento de sopro
antigo e que não tem nenhuma implicação tipológica ou ritualística cerimonial
ou sequer uma “sombra” das coisas futuras, não existe nenhum problema em
utilizá-lo em nossas celebrações.
Se fôssemos ser “bíblicos” em
tudo o que fazemos, a situação iria ficar complicadíssima para a igreja de
nossos dias, pois também teríamos que perguntar coisas do tipo:
É bíblico usar guitarra, bateria, órgão, teclado,
microfones, caixas de som, projetores no culto?
É bíblico usar bancos estofados, cadeiras longarinas
confortáveis, ventiladores ou ar condicionado, belos bebedouros, e outras
comodidades para que os crentes se sintam bem num culto?
É bíblico usar nomenclaturas ou títulos como Escola Bíblica
Dominical, Departamentos, ministérios diversos, Culto de Missões, Missionário,
Culto de Oração, Reverendo e etc., ou colocar o nome da igreja numa placa?
É bíblico o batismo por aspersão?
As perguntas “bíblicas” poderiam
se multiplicar para cada detalhe de todas as coisas que usamos e fazemos hoje
como igreja e em nossos cultos. E o pior, haveria alguns versículos no Novo
Testamento que nos impediriam de utilizar as coisas do “mundo” para não
contaminar a espiritualidade da igreja, como as que mencionam a santidade total
que devemos possuir (2 Coríntios 7:1 e etc.) e as que falam para nos afastarmos
das coisas que existem no mundo (1 João 2:15-17).
Concluo, que, ao contrário que
responde o Reverendo, e respeitando sua posição como erudito cristão
conceituado nos meios acadêmicos, que SIM, podemos utilizar o shofar em nossos cultos se desejarmos.
Apenas devemos ter o cuidado de ensinar aos nossos que ele não possui nenhum
“poder sagrado”, nenhuma condição especial diante de Deus e que não se trata de
instrumento mais especial que os outros, porém carrega seus simbolismos
antigos, de convocação solene ou de anúncio de algo importante.
Não precisamos abrir mão de
coisas simples e belas que foram usadas na adoração a Deus por causa de pessoas
equivocadas e sincretistas que são irresponsáveis com a fé alheia e fazem do
povo de Deus motivo de lucro (2 Pedro 2), nem por receio de estarmos
“judaizando” a igreja de Cristo. Nenhuma destas coisas ou quaisquer outras
devem nos impedir de adorarmos e louvarmos o nosso Deus como o próprio Cristo
nos ordenou:
Amarás, pois, ao Senhor teu Deus
de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de
todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento.
Marcos
12:30
...Pois está escrito: ‘Adore o
Senhor, o seu Deus e só a ele preste culto’".
Mateus
4:10
Por isso, toquem o shofar e todos os instrumentos de
cordas, teclas, sopro e peles na adoração e no louvor ao nosso eterno e único
Deus, pois Ele é digno.
Louvai ao Senhor! Louvai a Deus no
seu santuário; louvai-o no firmamento do seu poder!
Louvai-o pelos seus atos
poderosos; louvai-o conforme a excelência da sua grandeza!
Louvai-o ao som de trombeta;
louvai-o com saltério e com harpa!
Louvai-o com adufe e com danças;
louvai-o com instrumentos de cordas e com flauta!
Louvai-o com címbalos sonoros;
louvai-o com címbalos altissonantes!
Tudo quanto tem fôlego louve ao
Senhor. Louvai ao Senhor!
Salmos 150
Soli Deo gloria.
Carlos Carvalho
Teólogo formado pelo Seminário Teológico Batista
Independente de São Paulo e pela Universidade Metodista de São Paulo.
Bibliografia
Bíblia Sagrada. Nova versão Internacional e Almeida Revisada
Imprensa Bíblica
CHAMPLIN, Russell Norman. O Antigo Testamento interpretado: versículo
por versículo: dicionário – M – Z / volume 7 / por Russell Norman Camplin.
2. ed. – são Paulo: Hagnos, 2001, p.4832-4835.
Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. / Colin
Brown, Lothar Coenen (orgs.); [tradução Gordon Chown]. – 2. ed. – São Paulo:
Vida Nova, 2000, p. 2555.